Narciso e a violência
Isabel Pires
Os estudos atuais sobre a violência no Brasil se dividem em três principais vertentes. Para alguns economistas, o problema da violência tem raízes na má distribuição de renda e, deste modo, poderia ser resolvido por programas governamentais que garantissem uma renda mínima para todos. Os sociólogos vêem a violência urbana e rural como decorrência da própria formação da estrutura da sociedade brasileira, originada, desde a sua fundação, em dicotomias do tipo senhor-escravo, branco-negro, que posteriormente evoluíram para dicotomias mais perversas, como rico-pobre, morador do asfalto-morador da favela, patroa-empregada, etc. Programas de inclusão social e investimento em educação, como formas de oferecer melhores oportunidades aos menos favorecidos, minimizariam o problema da violência. E há, também, a vertente antropológica, que leva em conta a violência não como um “produto” social ou econômico, mas como algo inerente ao ser humano e que, por isso mesmo, deve ser reconhecida como um problema social e humano a ser enfrentado, e não varrido para debaixo dos tapetes institucionais da sociedade, que buscam antes encobri-la, afastando-a do convívio “harmonioso” dos “homens de bem”.
De um lado, a estrutura social institucionalizada de repressão ao crime, à desordem, à violência: as penitenciárias, os hospícios, os reformatórios de crianças e adolescentes. De outro lado, os criminosos, os loucos, os rebeldes que se mirariam nessa mesma estrutura para reproduzi-la de modo subvertido, contra a ordem estabelecida. Exatamente como um espelho. Ocorre que a violência não se exerce num território delimitado, que pertence somente aos bandidos e marginais, ao “crime organizado” que estaria “do outro lado do espelho” social. Neste “espelho”, bandido e polícia parecem não apenas se mirar, mas fazer a clássica pergunta da madrasta má, embora bela, da Branca de Neve: “espelho, espelho meu, existe alguém mais violento do que eu?”.
Toda forma de violência parece ter, em sua base, um condicionamento narcísico. Ou seja, por pura vaidade, os indivíduos, os grupos, as classes, os países levam ao extremo suas divergências. Pela vaidade, em última análise, de se saber “o mais forte”, “o mais belo”, “o mais inteligente”, “o mais rico”, “o mais poderoso”. Afinal, não foi daí que surgiu o nazismo e suas idéias sobre a “pureza da raça”? E não foi do nazismo que se originou uma violência sem precedentes na história humana?
A própria vaidade, no entanto, impede os seres humanos – pelo menos, os “ocidentais” – de reconhecerem a violência como algo inerente à condição humana. O ser humano, criado “belo e perfeito”, à “imagem e semelhança de Deus”, não deve abrigar em si o feio, o hediondo, pois, nestes casos, a punição é severa. Assim, a violência, a face deformada de Narciso, é tratada paradoxalmente como algo anormal, divergente, patológico. Algo que deve ser oculto, excluído da convivência social, uma vez que contradiz o princípio mesmo do humano, aproximando-se do animal, do irracional e do ilógico. Porém, seria somente a partir do reconhecimento da condição “humana, demasiado humana” da violência, que a sociedade poderia, senão bani-la, pelo menos encontrar formas que pudessem proteger a todos do monstro que mora em cada um de nós.
Rio, 29/05/06.
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