Monday, April 10, 2006

O homem de dez milhões de dólares

O tenente-coronel da Aeronáutica, Marcos Pontes, o “primeiro astronauta brasileiro”, retornou dia 8 de abril de seu passeio de foguete em total segurança. Diretamente da Estação Espacial Internacional, onde ficou por dez dias, ele deu notícia, via satélite, de que os cinco grãos de feijão “plantados no espaço” haviam brotado. Sorrindo um sorriso sempre puro e franco, Marcos Pontes também fez poesia e filosofia no espaço: “Olhar as estrelas, ver o planeta e a passagem da noite para o dia a cada 40 minutos é tão bonito que muda a maneira como pensamos a vida”, revelou Marcos Pontes, numa constatação que custou aos cofres públicos a bagatela de dez milhões de dólares (americanos). Seis alunos, “com notas altas em ciências” e bom desempenho escolar, tiveram o privilégio de fazer perguntas por meio de telões a Marcos Pontes, o homem de dez milhões de dólares, que sorria enquanto flutuava e respondia. Outros milhões, mas de crianças, sem notas em ciências e sem escola, não puderam perguntar nada ao glorioso astronauta, ou porque fazem parte das “estatísticas invisíveis” por serem Pessoas Sem Registro Civil, ou porque as próprias escolas é que estão invisíveis – não foram construídas ou estão indo a pique – ou as duas coisas juntas. Esse é o Brasil, que não dá para ser visto nem do espaço.

Depois do reality show espacial, a ficção:

Tinta dourada nos cabelos


Estirado em seu catre, Clóvis emite gemidos cada vez mais espaçados. A sensação de poder – efeito do último delírio provocado pela febre – começava a abandoná-lo, e ele já retornava ao estado de normalidade, daquela normalidade em que ele se encontrava desde que fora lançado naquele estado. Talvez fosse preciso amputar a perna, a esquerda. Talvez não precisasse. Mas não era isso o que o preocupava no momento. Do cômodo ao lado vinham os ruídos produzidos por Anna, às voltas com a trempe de cozinhar. Ele chamou-a:
— Anna! Anna!
Os ruídos cessaram momentaneamente para em seguida recrudescerem, mais fortes.
—Anna! Anna!
Havia uma parede separando os cômodos, o que fazia com que Anna ficasse fora do campo de visão de Clóvis. De qualquer modo, ele não poderia enxergá-la. Estava cego.
— Anna!
Anna finalmente entrou no cômodo, enxugando as mãos no avental encardido.
— O que você quer, velho?
— Que horas são?
— Para quê você quer saber as horas? Não temos relógio.
— O meu mingau. Você fez o meu mingau, Anna?
Anna senta-se num banco, próximo à cama.
— Você não fez o mingau, Anna?
— Escuta aqui, velho. Você pensa que fico o tempo todo por sua conta? Que não tenho minhas necessidades também?
Sério, Clóvis talvez pensasse no que responder a Anna, sentada ao lado do catre.
— Necessidades? Que necessidades, hein, Anna?
Anna levantou-se, brusca.
Vou terminar o meu serviço, disse ela, mas não se mexeu do lugar, fixando os olhos na perna devastada de Clóvis.
— Volta aqui, Anna.
Como Anna não respondesse, Clóvis pôs-se a berrar a plenos pulmões:
— Meu mingau! Traga o meu mingau! Anna, sua velha safada! Volta aqui e me diz que necessidades são essas que você tem, Anna. Anna!
Anna empurrou mais o banco para perto da cama de Clóvis. Sentou-se novamente.
— Você quer mesmo saber, velho?
— O meu mingau, Anna.
— Está aqui o seu mingau.
Anna pega um prato cheio de mingau na mesinha postada à cabeceira da cama de Clóvis. Coloca ao seu lado e entrega-lhe uma colher, que ele pega, sôfrego e vacilante.
— Está frio.
Clóvis cospe o mingau.
— Está sem açúcar.
— Essa é boa. Você sabe muito bem que não pode mais com açúcar.
— Anna, coloque açúcar no meu mingau.
Ela abana a cabeça, negando. Mas Clóvis não viu o gesto. Clóvis não pode ver Anna e o seu avental sujo, o rosto cansado, a poeira que gruda nos sulcos fundos das rugas.
— Anna, me diz uma coisa. Você coloca açúcar no seu mingau?
— Eu não tomo mingau. Isso é coisa de velho doente. Vou terminar o meu serviço. Mais alguma coisa, velho?
Anna aguarda por instantes. Então pega o prato e a colher e se dirige para o cômodo ao lado, para sua lide. Clóvis grita:
— Anna, sua megera. Volta aqui, Anna. Você não quer saber o que eu quero?
Os barulhos recomeçam, fortes, decididos, no cômodo ao lado, enquanto Clóvis grita.
— Eu? Eu quero uma coisa, Anna. Volta aqui, Anna!
Ela retorna, de espanador na mão, sem fazer ruído. Clóvis continua a plenos pulmões:
— Sabe o que eu quero? Eu quero os meus vinte anos, Anna. Anna, você pode me dar de volta os meus vinte anos?
Anna aproxima-se o suficiente de Clóvis para berrar-lhe no rosto:
— Não!
Clóvis se aquieta, calado. Está um tanto pálido, mas não demonstra qualquer comoção. Quando retoma a voz, fala pausado, quase para dentro de si mesmo.
— Anna, Anna, sua bruxa. Você lembra de quando nos conhecemos? Eu tinha vinte anos. Você também tinha vinte anos, Anna. E fazia tanta questão de dizer que era Anna com dois enes. A diferença é que eu não tenho mais vinte anos. Você me tomou os meus vinte anos, e agora só você tem vinte anos, Anna. Anna? Lembro que naquela época você pintava os cabelos.
Eu continuo com dois enes no nome. E ainda pinto os cabelos, velho, respondeu Anna, ajeitando os fios grossos maltratados e pintados com uma coloração muito escura, que contrastava com o cabelo ralo e sem cor de Clóvis. Pinto os cabelos desde os quinze anos, ela revelou, e o seu tom era ligeiramente melancólico. Sentou-se na beira da cama, bem perto de Clóvis, enquanto ele, com mãos tateantes, procura os cabelos de Anna.
— Anna, por que você cortou os cabelos?
— É muita tinta, velho. Com tantos remédios para comprar, temos condição para isso?
Clóvis, com ar vago, continua afagando os cabelos de Anna. Um sorriso quase se faz presente no canto do lábio.
— Anna...
— Está na hora do remédio, velho.
— Você tinha os cabelos dourados. E eles eram suaves como um raio de sol da manhã.
— Deixe-se de poesias baratas, velho bobo.
Anna levanta-se e começa a espanar com furor.
— Você ainda tem os cabelos de ouro, Anna?
— Tinta dourada custa mais caro.
Anna sacode a toalha pendurada num prego, dobra as roupas espalhadas sobre a velha cômoda a um canto. Guarda coisas nas gavetas.
— Ai! Está doendo, Anna.
— Vou lhe dar o remédio.
Anna vai buscar um copo de água e o entrega, junto com dois comprimidos que Clóvis ingere de uma vez só.
— Quero mais.
Ele estende a mão, apalpando a mesinha da cabeceira, onde encontram-se os medicamentos. Com algum esforço, Anna arrasta a mesa e leva-a para o outro lado do cômodo, sob a janela fechada.
— Velho murrinhento. Fique quieto no seu canto.
Anna pega a vassoura e, com certa pressa, varre todo o cômodo.
— Anna?
Ela não responde, empenhada no trabalho.
— Anna, por que é que você está arrumando tudo, hein, Anna? Quem é que vem aqui, Anna com dois enes?
Anna desaparece por instantes e retorna carregando uma pá de lixo. Clóvis começa uma crise de asfixia.
— Deus!
Anna larga a pá, e a pá produz um barulho estrondoso, que ecoa pelas paredes escurecidas de tempo do quarto. Ela corre e segura Clóvis, sufocado e vermelho. Aplica-lhe massagens cardíacas e, aos poucos, Clóvis recobra a respiração, exausto.
— Velho, qualquer dia você me mata de susto.
Clóvis segura os braços de Anna, apalpa-lhe a cintura, os quadris.
— Você engordou, Anna.
— Velho idiota.
Ela levanta-se e desaparece no cômodo ao lado, não sem antes tropeçar na pá de lixo, largada no caminho. Anna solta um palavrão – o palavrão mais cabeludo que conhece e que Clóvis não escuta. Ele está longe, bem longe, embora não possa sair do seu catre. Os barulhos retornam, furiosos, ampliados, enquanto Clóvis delira, a febre muito, muito alta.




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