Thursday, April 06, 2006

As cabras e O código secreto

Leio no jornal matéria de há alguns dias a respeito de superlotação de cabras na ilha de Trindade, “a maior montanha do Brasil”, com 5.500 metros dos seus 6.100 totais submersos no Atlântico. As cabras, levadas para a ilha pelos colonizadores do Brasil na época do Império, estão agora sendo exterminadas a tiros de espingarda por serem consideradas ameaças ao delicado ecossistema da ilha. Enquanto isso, a uns mil quilômetros dali, no continente, as ilhas de fome, “urbanas”, “rurais” ou “suburbanas”, se multiplicam e se alastram pela superfície do território brasileiro, formando verdadeiros arquipélagos. E a “pergunta que não quer calar”: por que, em vez das cabras, não exterminam antes a fome, com as próprias cabras?

Agora, a ficção:

O código secreto
Isabel Pires

As três palmas soaram, anunciando a chegada do Guardião ao recinto onde o Imperador Sereno o aguardava com uma ponta de ansiedade escorregando pelo brilho do olhar.
O Guardião prostrou-se diante do Imperador, e com ele todos os que o acompanhavam, até que Sereno mandou erguerem-se.
Majestade!, fez O Guardião, aproximando-se mais e tomando da mão imperial para beijá-la. Sereno, porém, dispensou a bajulação protocolar, retirando depressa a mão sem anéis.
E então? Trouxe?
O Guardião fez um sinal para o Chefe da comitiva. Um imenso baú de madeira ricamente entalhada foi colocado diante do Imperador.
Os Sábios Patrióticos suspenderam a própria respiração, ansiosos. Os Sábios Veneráveis não suspenderam nada, mas fizeram uma cara de quem já tinham visto aquele filme.
O Guardião em pessoa abriu O Baú, e O Explicador foi chamado para retirar de dentro dele O Tesouro. E também para explicá-lO.
Majestade! Essa é a maior descoberta arqueológica da nossa civilização, disse O Guardião, enquanto O Explicador preparava-se didaticamente, ajeitando O Tesouro sobre uma mesa onde todos podiam admirá-lo.
Na mesa não muito rica, como aliás tudo em volta (à exceção do Baú), via-se uma espécie de maleta preta, que, aberta, causou grande espanto em todos os presentes. Em uma das metades da maleta, peixinhos coloridos nadavam despreocupados num aquário com plantas, pedras e conchinhas. De vez em quando, os pequeninos peixes posicionavam-se de frente para a platéia, com os minúsculos olhos arregalados fixos em dezenas de olhos maiores e mais arregalados ainda. Depois, os peixinhos se sacudiam e voltavam ao seu passeio, indiferentes, para a seguir olharem fixamente de novo para a platéia etc. etc.
Trata-se de mera proteção de tela, explicou O Explicador, apertando displicentemente uma das teclas embutidas na outra metade da maleta preta.
E o que é proteção de tela?, quis saber o Imperador Sereno, externando a curiosidade dos presentes, inclusive a dos Sábios Veneráveis, que, afinal, nunca tinham visto aquilo.
Trata-se de um computador, um antigo artefato, muito utilizado na III Revolução Tecno-Científica da era da Civilização Tecnológica. Este exemplar foi encontrado quase perfeito, exceto pela alça, que foi perdida, e para cujo desaparecimento ainda não encontramos explicação plausível. Mas o mais importante não é a descoberta em si, senão o que ela contém.
O Explicador apertou novamente uma tecla e, na outra metade da maleta aberta, onde antes nadavam os peixes coloridos, surgiram, em profusão, caracteres negros, que reproduziam, contra um fundo branco e de forma ordenada, os mesmos caracteres contidos nas teclas da outra metade da maleta preta.
Trata-se de um texto escrito, explicou O Explicador, que começava todas as suas explicações com “trata-se”. Ou melhor, trata-se de um texto digitado, corrigiu ele.
Sim, mas o que significa isso?, inquiriu já nem tão sereno o Imperador Sereno. Como vamos saber o que a descoberta contém?
O código.
Código?
O código secreto. Levamos muito tempo para decifrá-lo. Finalmente estamos de posse da chave para desvendarmos o conteúdo da nossa descoberta arqueológica, e assim, a fantástica descoberta passará a ser uma preciosa descoberta e
Anda logo com isso, intimou Sereno, dando fim ao blábláblá do Explicador.
Atenção todos, pediu O Guardião. É preciso revelar, para que nunca mais fique oculto, o código secreto. E para que principalmente todos tenham acesso a ele.
Trata-se do seguinte (era o Explicador falando). Control t alt zero um cinco um.
Control t alt zero um cinco um, repetiram como numa espécie de transe todos no recinto.
Control t alt zero um cinco um, fez O Explicador, apertando as respectivas teclas da mala preta aberta sobre a mesa. E imediatamente tudo começou a se desfazer: o Imperador Sereno, os Sábios Veneráveis e os Patrióticos, a comitiva do Baú e seu Chefe, o Guardião e por fim O Explicador, que ainda teve tempo de dar um último trata-se.

No pequeno palco iluminado do laptop, o mundo inteiro havia se reduzido a um único travessão.
 

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